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Há uma beleza histriónica na decadência, uma transcendência que não existe no vigor do inicio de algo, no florescer de um principio iluminado. Esse terminar decadente como uma luz que se apaga lentamente tem a impassividade do tempo, a predição sistemática da ruína. A intensa beleza decadente da rendição final do Inverno tirano nos braços dourados de uma Primavera esfuziante nas suas promessas.

As ruínas são um embalar virtuoso da nossa própria existência; são janelas abertas como retratos da alma; há nelas aquele vigor escondido num catecismo de indiferença que quase sempre recusamos olhar atentamente. Mas são isso mesmo: avisos do que está para chegar. Discípulos em veneração de outros tempos, como na recordação do fogo daquele primeiro beijo e os braços em volta do nosso pescoço, compreender a reverência desses instantes porque no fim só isso mesmo irá restar na nossa solidão. 

Adormeço com frequência entre elas porque as procuro com paixão. Tremo entre elas quando caminho nos seus silêncios e sossego como se fosse um fantasma enamorado e ciumento.

(Fleuma)

Agrada-me de forma solene a lenta deterioração ideológica nas criaturas que pensam comandar os destinos dos outros. É um dos meus raros momentos de alegria genuína assistir a essa decrepitude moral, assente num curvar humilhante perante a estatística do falhanço enquanto vão agitando os braços na procura de algo que venha em seu socorro. Esse patético momento, a minha referência mais do que absoluta para a incapacidade humana em sustentar algum altruísmo coletivo, revela todas as arbitrariedades da massificação das ideologias mais corruptas, insensatas e castradoras do individuo, em nome de uma palavra, uma ideia de perfeição falhada: Democracia - igualdade para todos - responsabilidade para todos.

E não. Não tenho outra solução para esta farsa que não habite em mim próprio. Não tenho nenhuma outra resposta para esta grande Democracia que se imagina como Grande Verdade, que não afirme exatamente o seu contrário. É impossível para mim não imaginar tudo isto como uma nova forma de tirania mascarada com as boas intenções da mais imperfeita das criaturas. Nós.

Não pretendo oferecer consolo, por mais parco que seja, porque temos o que merecemos, pela nossa inépcia, preguiça na reação e conforto no pensamento. Acho apenas delicioso este fraterno conceito de uma Grande Verdade que afinal não existe! Este martelar histérico e constante de um populismo imbecil e manco ora de uma Esquerda disfuncional e esquecida do seu passado, ora de uma Direita debiloide que apenas serve para reproduzir obscenidades e fantasmas fascistas. Esquerda e Direita em frente a um espelho na mesma imitação de macacos ensinados.

A Verdade é que afinal não existe uma Grande e única Verdade, e que tudo se torna muito pior com esta conclusão: a ironia de sermos uma extensão de Nada. De continuarmos a tentar transformar esta inércia na nossa forma vital.

(Fleuma)

Podemos tentar reproduzir algum sentido de ordem num caos permanente. Alinhar os objectos numa tentativa absurda de quantificar o que achamos ser nosso e apenas nosso. Sonhar com uma suposta capacidade perfeita para planear os dias, enquanto deixamos as noites entregues à inconsciência de morte que não conseguimos controlar. Vestir a roupa da nossa sorte. Beijar muitas vezes a medalha do santo preferido. Tudo serve. Tudo importa.

Meditar sob o peso das incertezas, enquanto vamos escondendo dentro de nós uma lei de probabilidade que consiga deixar-nos mais humanos. 

E se eu disser que procuro incessantemente essa sagrada e secreta geometria da sorte? Que não procuro a glória, mas antes quero alinhar a possibilidade de conhecer todos os sintomas antes do seu desaparecimento da memória? 

Que a minha respiração se aquieta de olhos cerrados enquanto percorro as linhas de um corpo nú e vou lamentando o que deveria ter dito antes e não disse.

(Fleuma)

 

 

 

 

Talvez eu não saiba dos anos dos outros.

Creio que sim. Não sei nada.

Nunca pretendi que assim fosse, por essa impossibilidade de desejar "um feliz ano" sem  estar em frente ao outro, sem cravar os meus olhos nos do outro. O que não deixa de ser paradoxal nesta vaga de redes sociais onde o calor de um abraço, a leveza de um beijo, são servidos por algoritmos disfarçados pela distância e aborrecimento de mais um ano que passou.

Estranho em mim.

Talvez assim seja porque sempre fui isso mesmo: animal de labirintos e atmosferas a desejar ardentemente confiar em algo ou alguém. 

Os anos foram passando com a intermitência corrupta e escura daqueles pensamentos venenosos de quem sai de um labirinto para entrar na sombra de outro. E é estranha, esta pulsão por labirintos e sombras que nunca me irá abandonar, este ritmo quase carnal que não me deixa descansar sem imaginar como poderiam ter sido os outros anos. Antes deste.

Compreendo. Não consigo imaginar o ano dos outros sem sentir aquela fome voraz de absorver os seus dias e as suas noites. Arrastar outros para os meus tempos e os meus pensamentos. Agarrar nas suas cabeças e baixar os seus olhos com os meus.

Terrível e egoísta. Eu sei. E não me envergonho; os meus anos que desejo são o que eu sou e no que os vou transformando até ao meu último suspiro.

Porquê Outubro? Porque não outro mês? Existem tantos!

Porque foi no Outubro de um Ano onde não foram desejadas boas entradas nem boas festas que consegui, lenta e dolorosamente, paulatinamente, dar um nome próprio a Sombras e Labirintos. Beber de outras Atmosferas.

Creio que sim.

Foi num Outubro que deixei de olhar um Ano como mais um tempo que passou. E apenas isso.

Como se em cada ano que que vou deixando para trás ficasse um pedaço que me pertence e o qual recuso perder.

(Fleuma,)

 

(999)

 

Lá fora 10 graus negativos. Dentro da sala, pelos recantos de sombras atravessados pelas luzes artificiais, entre o calor ameno do som das palavras amigas, antes estranhas e desconhecidas, num torpor cansado, sentado entre isto, deliciosamente rendido ao sono que se aproximava...

Tu.

Entre tudo isto: Tu.

Nos passos serenos e felinos em direcção a mim. Em frente a mim. Tudo se silenciou naqueles instantes. Esta memória que nunca me abandonará. A respiração selada num aperto. Os olhos abertos apenas num sentido. O peito congestionado num bater estranho, disperso, mínimo. A incapacidade de uma palavra. Um idiota desajeitado e subitamente lançado em águas desconhecidas.

Tu és uma Chave.

Os teus olhos brilhantes nos meus. O sorriso na cor dos lábios grossos. A tua pele alva entre a sombra, recordou-me as minhas primeiras auroras do Norte, lancinantes de espanto e vigor. 

Algo animalesco cresceu naquele dia em mim. Algo que ficou sangrento e violento. Uma fome de possuir e nunca mais soltar. Um tremer quase demoníaco que nunca mais me abandonou na tua presença. Um prostrar frágil. Uma incapacidade de conseguir ver algo mais belo, um cismar silencioso de predador encarcerado numa escuridão de instintos proibidos, dormentes durante outros abismos.

Tu és uma Chave...

E eu, ainda hoje, não sei o que isto é. Não consigo regressar a mim. Sinto este corpo enorme e maciço, incompleto, junto ao teu - sinuoso e assustadoramente silencioso. Sem ruído. Como uma brisa.

Não sei o que isto é. 

Nas palavras saídas como encantamentos pela noite fora. No brilho de uma inteligência inata mergulhada nos olhos cristalinos. Nos cabelos longos. No sussurrar onde tudo se consuma. O meu corpo duro e sólido recebido pelo teu. Demasiado belo para ser meu.

Tu és a Chave.

(Fleuma,)

 

Aos dias de existência no Limiar, 

É fácil, tão estranhamente fácil, adormecer ao som do vento que assola a subida; uma tentação que nos canta os encantos de parar, adormecer e deixar morrer.  Algo doce e amargo a tracejar o resfolegar do coração, não deixando lugar ao pensamento. Uma voz nossa. Nossa.

Gosto tanto deste egoísmo que consome os meus últimos instantes, antes dos passos finais para o cimo!  Do prazer intenso de mais um fim do caminho. Da fome voraz  que comanda o passar para uma nova página.

Este egoísmo absoluto, e perto, tão próximo da loucura, que me arrasta e sujeita a consumir todos aqueles instantes como únicos e sem repetição. Este balançar na velha cadeira do sonho. Esta paixão que não me deixa descansar e que um dia irá consumir a minha alma.

Este terminar num respirar moribundo procurado e consentido. Nestes dias de chuva, muita chuva.

Esta vontade de voltar a partir. Este egoísmo de não regressar.

(Fleuma,)

 

 

 

A minha reverência vem da Sombra. É carnal e ansiosa pelas noites longas. Bebe sôfrega na ausência de um corpo onde descanso. Uma salvação entre purgatórios. Uma necessidade de libertação. E desejos. Demasiados.

Mas alguém sabe melhor disso do que eu. Alguém transfigura esta reverência demasiadas vezes carnal. Animal. Sedenta. Numa pacificação que submete a minha paixão, como se em toda esta saudade estivesse a chave para justificar tanta fome.

Pouco sei dos meus instintos. Não sou capaz de juntar todos os pedaços porque fico cego, porque se torna impossível adormecer na Sombra. Porque sei que apenas restaria um Inferno sem dono. Prefiro essa brevidade de instantes que alimentam os animais.

Mas conheço a voracidade que acompanha os meus instintos. Sei o que nasce da subversão do meu pensamento a tanta paixão escura. Sei da maldição de quem insiste em beber do seu veneno irresistível. 

Sei. 

Assim.

A alquimia perfeita no desejar de um corpo, comprimindo cada estilhaço de ânsia numa febre de morte, exaustão e derrota. E mesmo assim, desejar essa derrota como única salvação para obter algum abrigo e paz.

Sei que assusta.

Porque no silêncio das minhas emoções não consigo esconder um fogo primário e blasfemo e que nunca consegui prender seguro. Porque não sinto culpa e apenas deixo que me consuma em rasgos. 

Mas alguém sabe disto melhor do que eu.

O brilho dos seus olhos é Cósmico de triunfo e conhecimento. 

A sua arte de submissão animal é ancestral e inexplicável ao meu barbarismo emocional.

(Fleuma,)

 

" aos olhos de um louco..."

Eu desejo apenas a eternidade dos momentos, sabendo que não sou eterno. Talvez por arrogância. Talvez porque desconheço outra forma de sentir certos momentos. Não sei. Não quero saber. Nunca me interessou a maldição do que seria uma eternidade vivida, mas certos instantes deveriam ser para sempre gravados, como moléculas dispersas, genes egoístas, que se recusam a ceder à dádiva de morrer. Nestes momentos, eu recuso a ideia de que nada é eterno. Existem em potência, durante as noites em que me permito a liberdade do que sou realmente. Eu. Em comunhão, a girar por outros Universos, mas ainda assim: Eu.

Momentos para respirar uma outra alquimia. Um rugir dos sentidos, afiados numa equação de unidade onde consigo tornar-me parte de um todo - nem que seja apenas por alguns momentos. Uma ironia suprema, este varrer da solidão para um canto distante, como quem tranca a sete chaves o monstro.

Gosto, nestes precisos momentos, de deixar de me conhecer. Gosto de abrir a porta às sombras e deixar que entre um perfeito desconhecido, antes adormecido dentro de mim. Vergo-me a ele enquanto me encanta até que me torne negro, desfigurado de qualquer outra emoção senão a que me despe de tudo o que não seja liberdade, quando todo o resto se revela vazio, distante e irreconhecível. 

O coração é uma trovoada na escuridão. Os olhos sonham entre os véus negros desses instantes. Os ouvidos escutam o que antes desconheço.

Deixo entrar o odor deste desejo de momentos eternos.

E nestes instantes que desejava, fossem para sempre, entre os meus próprios demónios, oiço a minha voz a crescer...

Como se, por vezes, o verbo fosse a verdadeira oração para continuar a viver.

Fleuma,

(999)

Ali, as tardes são calmas, densas em sobriedade, carregam consigo aquele sabor da mais intensa paixão para quem prefere o descanso da obscuridade sem ruídos. É onde o tempo se encolhe sobre si enquanto a imaginação diz que sim, que o Universo é nosso, que apenas enche as nossas mãos. O pensamento, nestas tardes, só consegue existir em nós porque se torna numa constelação imensa, não é possível domar o que gravita por nós naquela imensidão de silêncio distante, no formigar constante da nossa fragilidade pequena, absurda.

Gosto de me sentar na cadeira que baloiça sem ruído, de braços e pernas estendidas e abertas, na mais absoluta e descomposta reverência, quando, nesse entardecer, faz menos frio e não se vislumbra a neve nem o gelo, nem sequer lá muito longe; deixar que o calor de um sol brilhante mas fugaz, toque, astuto, na minha face sem os óculos escuros que tanto amo, aquecendo-a tão suavemente, carinhosamente cálido, rasgando as imensas janelas de vidro cristalino, forçando os olhos para distâncias impossíveis, ajoelhando a respiração num aquietar brando, em surdina.

Na calma imóvel desta tarde, quando tudo em nosso redor se acalma numa luz suave, resisto a tudo o que seja movimento, recuso-me a mexer um tendão, como um animal encadeado por algo precioso, apenas sabendo que está vivo porque respira em compasso, e consegue inspirar o aroma possante do café mais negro, uma corrente de protecção contra um desvanecimento consentido. Nos olhos semicerrados, um testemunhar translúcido, cravejado no peito expandido e incapaz de compreender o portento de saudade e nostalgia com que certas tardes nos fustigam os dias.

E torna-se um fim. Um mistério. Um meio de justificação.

Para o espírito sobrecarregado este seria o fim perfeito. Suavemente percorrendo o caminho final. De coração incinerado. Absorto na sua própria felicidade.

Fleuma,

 

 

... ensina-me como caminhar para a tranquilidade,

porque eu só consigo falar-te de tempestades  ...

Fleuma,






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