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"Aqueles que amam com grande paixão nunca poderiam amar várias mulheres ao mesmo tempo: quanto mais força há na paixão, mais o seu objecto se impõe."

Emil Cioran - " Nos cumes do desespero"
 
 
 
 
Existe um profundo desespero na minha forma de agarrar o corpo despido nas últimas horas da noite, quando a luz do dia retorna tão tímida, como se o quisesse esbatido com o meu, graduando as minhas sombras e os meus desejos mais famintos. Nestas horas de meia-luz, quando os olhos brilham imensos, cresço desgovernado na animalidade que noutros momentos acorrento, na torrente das pernas suaves nos relevos do meu corpo congestionado, nos dedos longos que pressionam a grossura do meu pescoço que nunca parece ter repouso, na minha sofreguidão infatigável que necessita do sorriso de dentes brancos como a neve, dos cabelos longos e soltos, do cetim da pele que cheira a maresia glaciar, para que se vergue e retire de novo para a escuridão. Não existe em mim nenhuma dessas centelhas poéticas ao amor, antes a dolorosa consequência de uma paixão tão pulsátil que se não lhe escutar o sussurrar ofegante, o morder até às gotas de sangue nos meus ombros, não descansará até que eu fique louco e em pedaços. Nunca senti a urgência daqueles que parecem navegar numa aura de entrega quase etérea, celeste no toque, quase num medo que assuste. Tenho que sentir esse animismo de comunhão com outro animal de sentidos sem essa candura poética, que me consuma este desespero incansável e apague esta consciência nas horas antes do sol. É isto que pulsa em mim, uma raiva de possuir até fundir em corpos nus, entregar a minha alma e energia para que me aceite e domine porque sei da minha própria redenção num abraço apertado corpo contra corpo, no sorrir secretamente triunfante, na ponta dos dedos suaves, cálidos e mestres nos meus lábios, tentadores na língua, adormecendo por fim a minha vontade de morder e rasgar.
 
E nestas horas finais o Tempo é meu, a Vida é minha e apenas minha.
 
O encantamento final é sussurrado aos meus ouvidos e nem os Deuses deixo que o escutem. 
 
(Fleuma)
 
 
 
 

A frequência com que faço exactamente o mesmo caminho para chegar e sentir o abrigo da velha cabana no meio de nada é a mesma de outros tempos, quando a velho ainda me acompanhava numa espécie de ritual de iniciação passado de geração em geração. Creio que o velho senhor muito mais do que eu na minha arrogância, conhecia as virtudes da ritualização da solitude mais áspera, cultivada pelos anos passo a passo, não como uma obrigação mas como uma sujeição consentida naquele amor tão intensamente pessoal, que se não for domado nos transforma irremediavelmente. Nesses dias sempre lhe pressenti uma despedida nos olhos azuis turvos pela velhice enigmática, pela maneira como girava a cabeça pelo vazio branco à nossa volta, naquele estremecer tranquilo de antigo pássaro que nunca parece perder a altivez dos anos, exímio no trajecto até à cabana de madeira neste estranho universo de vazio invernal. Recordo-me de jurar em silêncio a mim próprio nunca abandonar este caminho até à cabana, de venerar o seu aprimorar de sentidos e o sentimento de ausência tão potente que se torna na torrente que volta a encher o meu mundo.  O velho compreendia isso como se eu fosse uma sua ramificação, descobri muito depois e enquanto caminhava por aqui em absoluta solidão. Creio que nestes passos nem a Morte tem fome de me levar. Até Ela parece aceitar a pacificação deste caminho no frio branco e inclemente do Norte até à entrada do abrigo, como um proveito que me concede pelo respeito a quem caminha. Sei que o velho senhor sempre soube desses portentos em que a distância nos parece mergulhar sem no entanto nos afogar. Desses baptismos e encontros. Demónios e Deuses que habitam em nós. Em mim. E eu aprendi a centelha de um amor que apenas se reconhece quando atravessamos esta solidão desoladora, porque é neste vácuo seminal que se sente a falta dos ausentes, e quando a velha cabana aquecida nos revela o assombro de um verdadeiro abraço de salvação. 

Consigo caminhar durante horas e em dispersão, ainda como se esse velho senhor estivesse ao meu lado, a respirar tranquilamente, arrebatados pela ausência de peso nos pensamentos, com as botas a pisar a neve como amarras a este mundo que nunca parece ser o meu, sentindo a veneração do silêncio à volta num inclinar de peregrino. E juro que ainda agora lhe sinto os passos suavizados pela neve nas botas a entrar na cabana. Que observo a sua mestria enquanto acende a lareira e esfrega as mãos sem as grossas luvas. E juro que ainda agora adormeço profundamente no baloiçar das nossas cadeiras a beber chocolate quente e a comer nacos de pão escuro com queijo, enquanto lá fora é noite de mil auroras boreais. 

Poderia morrer neste mesmo instante.

(Fleuma)

É impossível que no fim, esta saudade e esta solidão não se transformem numa punição física.

 

... Algumas destas palavras são estradas para o Norte, destiladas com aquela paixão profana, de quem muito dolorosamente consegue reter uma réstia de comando perante a tentação de nunca mais regressar por estes caminhos. A estrada para Casa. A verdadeira Morada. Quero convencer-me de que as minhas palavras são a expressão mais pessoal de exploração, sejam elas largas ou curtas, quero que assim sejam: interiores, dentro de mim, fora de mim. E mesmo sem elas, mesmo que se escondam a flutuar dentro de mim, quero que sejam esses os contos do que vejo e até onde chega a minha reverência - a força sufocada, até a brutalidade de tudo o que me consome. É tão carnívora esta paixão, tão voraz que mesmo nos cada vez mais raros momentos de distância forçada, apenas certas palavras que eu escrevo conseguem sossegar-me longe de uma voz que não se repete. 

... São a minha punição pessoal pelo tempo perdido mas também pelos encontros e as despedidas sem regresso, pelo que ficou por dizer, entranhado na minha obsessão pelas histórias contadas, que devem ser ditas, que só assim servem para algo, nem que sejam apenas para acender o meu desejo mais profundo de conseguir que sejam lidas em voz alta, como se fossem um fruto de pacificação pessoal, o destrancar deste semblante carregado de visões preciosas que a minha fome egoísta teima em esconder.

(Fleuma)

 

Rasgar as memórias como se fosse possível apagar do pensamento as sombras dos dias em que a desilusão parece sentada em cima dos nossos ombros, é um acto perfeito de derrota pessoal, um desconhecer dessa criatura que caminha ao nosso lado todos os dias, dissimulada e esquiva, uma parte de nós inseparável. Essa tentativa inútil que insiste em enterrar certas agonias debaixo dos escombros de uma esperança de melhores dias sem este veneno, é o traço fixo, sem tremor dessa besta perfeita, a que caminha connosco, a que se encontra sentada em cima de nós. Não adianta. Eu sei disso todos os dias. Acabei por desenhar o seu caminho e, principalmente, o lugar onde se esconde. 

Não volto a tentar rasgar impossíveis e deixei a humilhação da fuga, recuso-me no entanto, a vergar a cabeça ao vazio oscilante que habita esse labirinto, como quem se reconhece nele, por ele passa com um acenar, e aprendeu a sobreviver com o seu veneno espumoso. Mas ficaram as cicatrizes no pensamento e na pele. Marcas de que me orgulho. Estranhamente orgulhoso como se não soubesse que me vai assassinando lentamente.

E afinal, não é exactamente isso que me arrasta para mais um dia? 

(Fleuma)

 

Gosto dos que não se arrependem com uma frequência pegajosa e de hábito religioso. Talvez porque o verdadeiro arrependimento tenha um sabor inexplicável, complexo, demasiadas vezes provocando uma espécie de dormência que nos deixa doentes e indefesos. Há um desnudar neste admitir massivamente violento para o orgulho, um sabor muitas vezes amargo de derrota, que nos perfura e reduz a um estado primário de submissão demasiado dolorosa. Por isso o verdadeiro arrependimento é raro, tão solitário como penoso e violento. Por isso sou incapaz de acreditar em pedidos de perdão demasiado constantes, sempre nas primeiras palavras, e sempre, sempre após um erro cometido. Porque não é possível suportar o peso de algo tão visceral com essa frequência. E como tudo o que é raro e precioso, cada pensamento de arrependimento sentido arranca um pedaço de nós que não regressa - fica perdido. Mas quando acontece tem também aquele doce sabor de uma revelação única, um espasmo de conhecimento mudo em estado bruto, talvez até aquele reconhecer de que não se trata de um vergar humilhante, antes um sarar de mutilado. 

Por isto não é possível a insistência pegajosa e religiosamente reservada num verdadeiro arrependido, que tem tanto de doce como de amargo. 

(Fleuma)

Há uma beleza histriónica na decadência, uma transcendência que não existe no vigor do inicio de algo, no florescer de um principio iluminado. Esse terminar decadente como uma luz que se apaga lentamente tem a impassividade do tempo, a predição sistemática da ruína. A intensa beleza decadente da rendição final do Inverno tirano nos braços dourados de uma Primavera esfuziante nas suas promessas.

As ruínas são um embalar virtuoso da nossa própria existência; são janelas abertas como retratos da alma; há nelas aquele vigor escondido num catecismo de indiferença que quase sempre recusamos olhar atentamente. Mas são isso mesmo: avisos do que está para chegar. Discípulos em veneração de outros tempos, como na recordação do fogo daquele primeiro beijo e os braços em volta do nosso pescoço, compreender a reverência desses instantes porque no fim só isso mesmo irá restar na nossa solidão. 

Adormeço com frequência entre elas porque as procuro com paixão. Tremo entre elas quando caminho nos seus silêncios e sossego como se fosse um fantasma enamorado e ciumento.

(Fleuma)

Agrada-me de forma solene a lenta deterioração ideológica nas criaturas que pensam comandar os destinos dos outros. É um dos meus raros momentos de alegria genuína assistir a essa decrepitude moral, assente num curvar humilhante perante a estatística do falhanço enquanto vão agitando os braços na procura de algo que venha em seu socorro. Esse patético momento, a minha referência mais do que absoluta para a incapacidade humana em sustentar algum altruísmo coletivo, revela todas as arbitrariedades da massificação das ideologias mais corruptas, insensatas e castradoras do individuo, em nome de uma palavra, uma ideia de perfeição falhada: Democracia - igualdade para todos - responsabilidade para todos.

E não. Não tenho outra solução para esta farsa que não habite em mim próprio. Não tenho nenhuma outra resposta para esta grande Democracia que se imagina como Grande Verdade, que não afirme exatamente o seu contrário. É impossível para mim não imaginar tudo isto como uma nova forma de tirania mascarada com as boas intenções da mais imperfeita das criaturas. Nós.

Não pretendo oferecer consolo, por mais parco que seja, porque temos o que merecemos, pela nossa inépcia, preguiça na reação e conforto no pensamento. Acho apenas delicioso este fraterno conceito de uma Grande Verdade que afinal não existe! Este martelar histérico e constante de um populismo imbecil e manco ora de uma Esquerda disfuncional e esquecida do seu passado, ora de uma Direita debiloide que apenas serve para reproduzir obscenidades e fantasmas fascistas. Esquerda e Direita em frente a um espelho na mesma imitação de macacos ensinados.

A Verdade é que afinal não existe uma Grande e única Verdade, e que tudo se torna muito pior com esta conclusão: a ironia de sermos uma extensão de Nada. De continuarmos a tentar transformar esta inércia na nossa forma vital.

(Fleuma)

Podemos tentar reproduzir algum sentido de ordem num caos permanente. Alinhar os objectos numa tentativa absurda de quantificar o que achamos ser nosso e apenas nosso. Sonhar com uma suposta capacidade perfeita para planear os dias, enquanto deixamos as noites entregues à inconsciência de morte que não conseguimos controlar. Vestir a roupa da nossa sorte. Beijar muitas vezes a medalha do santo preferido. Tudo serve. Tudo importa.

Meditar sob o peso das incertezas, enquanto vamos escondendo dentro de nós uma lei de probabilidade que consiga deixar-nos mais humanos. 

E se eu disser que procuro incessantemente essa sagrada e secreta geometria da sorte? Que não procuro a glória, mas antes quero alinhar a possibilidade de conhecer todos os sintomas antes do seu desaparecimento da memória? 

Que a minha respiração se aquieta de olhos cerrados enquanto percorro as linhas de um corpo nú e vou lamentando o que deveria ter dito antes e não disse.

(Fleuma)

 

 

 

 

Talvez eu não saiba dos anos dos outros.

Creio que sim. Não sei nada.

Nunca pretendi que assim fosse, por essa impossibilidade de desejar "um feliz ano" sem  estar em frente ao outro, sem cravar os meus olhos nos do outro. O que não deixa de ser paradoxal nesta vaga de redes sociais onde o calor de um abraço, a leveza de um beijo, são servidos por algoritmos disfarçados pela distância e aborrecimento de mais um ano que passou.

Estranho em mim.

Talvez assim seja porque sempre fui isso mesmo: animal de labirintos e atmosferas a desejar ardentemente confiar em algo ou alguém. 

Os anos foram passando com a intermitência corrupta e escura daqueles pensamentos venenosos de quem sai de um labirinto para entrar na sombra de outro. E é estranha, esta pulsão por labirintos e sombras que nunca me irá abandonar, este ritmo quase carnal que não me deixa descansar sem imaginar como poderiam ter sido os outros anos. Antes deste.

Compreendo. Não consigo imaginar o ano dos outros sem sentir aquela fome voraz de absorver os seus dias e as suas noites. Arrastar outros para os meus tempos e os meus pensamentos. Agarrar nas suas cabeças e baixar os seus olhos com os meus.

Terrível e egoísta. Eu sei. E não me envergonho; os meus anos que desejo são o que eu sou e no que os vou transformando até ao meu último suspiro.

Porquê Outubro? Porque não outro mês? Existem tantos!

Porque foi no Outubro de um Ano onde não foram desejadas boas entradas nem boas festas que consegui, lenta e dolorosamente, paulatinamente, dar um nome próprio a Sombras e Labirintos. Beber de outras Atmosferas.

Creio que sim.

Foi num Outubro que deixei de olhar um Ano como mais um tempo que passou. E apenas isso.

Como se em cada ano que que vou deixando para trás ficasse um pedaço que me pertence e o qual recuso perder.

(Fleuma,)

 






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