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 ´ Dear Demon, i´ve got the thirst, you got the booze...`

 

(999)

 

 

Fascinam-me singularidades. São uma obsessão de batimentos surdos e silenciados apenas pela virtude de quem se apresenta à minha frente como singular. São quase fantasmagóricas correntes de sonho e refracção; gemas raras e tão preciosas como conhecimentos antigos, segredados no meu deslumbramento.

 

A singularidade niilista do anuir ao profanar de uma criatura que comanda em si mesma uma estética quase impossível de descrever, destruiu maquinalmente, todas as minhas reservas de resistência humana. Até na absurda génese de escuridão que transporta consigo me permite compreender todos os temores de um homem perante uma mulher. Existe um estranho renascer nos pactos feitos com certas singularidades; um reconhecimento de mim próprio que tanto me atemoriza como fascina obsessivamente.

 

Fascina-me este pontuar na minha carne com traços todos eles únicos aos meus olhos. Gosto de os percorrer em estudo; mesmo tendo sido minhas criações são caminhos traçados e mensagens de aviso. Como me fascinam os dedos trémulos, correndo sem destino as curvas de outro corpo. Nada mais importa porque sei que nunca se repetem gestos ou tremores.

 

Palavras? Por vezes, muito raramente, como se delirando em febre alta, traço outros que contam contos. A singularidade de respirar outra respiração; pestanejar por outros olhos luz e escuridão é uma conquista muito pessoal e apenas vista numa tão reduzida minoria. Está presente. Está ali, na ansiedade que consegue ser fria e na destreza de quem se rasga, expondo a garganta. Uma singularidade que não consigo. Algo singular que não se aprende. Mas que parece domesticar-se. Aparentemente.

 

" The litle shadow of you ..."

 

 (999)

 

 

Não concedo a mim mesmo aceitar a transformação forçada pela existência de outra criatura que se converteu numa chama demasiado brilhante. Recuso-me a aceitar a minha incapacidade de poder sonhar com um futuro sem que toda a soma e diminuição envolva o respirar com ela; que se tornem amargos todos os dias de viagem outrora solitária, perdidos nesta fome estranha e debilitante.

 

Todos os dias são de batalha contra este fogo lento. Questiono como foi possível permitir este assombrar por quem se veste de fragilidades? Como pode o que é rochoso evaporar-se ao riso branco e cristalino. Onde reside realmente o propósito de me render a esta devastação? Que incapacidade humilhante é esta de resistir a uma sensualidade tão carnívora e real? Como se podem baixar os braços sem questionar? Como se já a esperasse há muito tempo.

 

Quando não somos nós a encontrar mas a ser encontrados tudo se transforma em sentimentos pardos. A língua que toca na face é a demonstração cabal de uma animalidade intrínseca que se revela mais uma das suas artes escondidas. As mãos suaves, desmedidamente suaves, tantas vezes conseguem espairecer o fluxo sanguíneo de um corpo sistematicamente tenso, pressionando o pescoço rígido, descomprimindo a alma; relembrando-me com uma mestria absurda que também existe em mim ossos e carne.

 

Existe uma persistente analogia que perfura sem retiro a minha consciência desde os primeiros momentos em que estou acordado até aos últimos segundos antes de adormecer. Estranhamente, reduz a nada tudo o que aparece cantado por bardos e poetas. Não cheira a rosas ou traz consigo o amanhecer dos recantos amorosos. Tem a potência de um manifesto venenoso para criaturas como eu. Uma necessidade de repetição; como um último desejo antes da morte. Torna-se absolutamente essencial que volte a escutar uma única voz. Uma gargalhada que consegue dissolver ácido e ódio. Um círculo de braços em volta do meu pescoço enorme, pernas cercando a minha cintura, seios contra as minhas costas e um perfumado respirar na minha nuca, enquanto carrego o seu peso de anjo: para que os seus pés não percam o calor no chão gelado. Porque as minhas botas são sempre mais pesadas e grossas do que as suas.

 

Recuso aceitar uma criatura que me salva pela mera força de existir. Não aceito que seja tão ténue a linha do prazer e dor. Recuso a vitalidade que devolve ao que perco. E no entanto, eu sei que tenho mais do que mereço. E alguém sabe, advinha, como bate a minha alma. Sabe que daria a minha miserável existência por ela. Nada tem de dramático ou romântico, esta morte. Seria apenas a mais valiosa oferta  da minha posse.

 

E seria pouco. Nada.

 

 E. Cioran

 

...

 

 

O grotesco e o desespero

 


De todas as formas do grotesco, a mais estranha, a mais complicada, me parece ser aquela que mergulha as suas raízes no desespero. As outras não visam nada além de um paroxismo de segunda mão. Ou existe um paroxismo mais profundo, mais orgânico, do que aquele do desespero? O grotesco aparece quando uma carência vital engendra grandes tormentos. Pois não se vê uma tendência desenfreada à negatividade na mutilação bestial e paradoxal que deforma os traços do semblante para lhes imprimir uma estranha expressividade, neste olhar habitado por sombras e luzes distantes? Intenso e irremediável, o desespero só se objetiva na expressão do grotesco. Este representa, com efeito, a negação absoluta da serenidade - este estado de pureza, de transparência e de lucidez, nas antípodas do desespero -, este que engendra apenas Nada e caos.

 

Provastes da monstruosa satisfação de observar-vos no gelo depois de inumeráveis noites em claro? Submeteste-vos à tortura de insônias em que cada instante da noite é sentido, em que se está só no mundo e se sente viver o drama essencial da história?; estes instantes onde nada mais tem o menor significado e tudo cessa de existir, pois sentis elevar-se em vós chamas temíveis e vossa própria existência aparece-vos como única num mundo nascido para vos atormentar - já provastes destes inumeráveis instantes, infinitos como o sofrimento, em que o espelho envia-vos a imagem mesma do grotesco? Reflete-se aí uma última tensão, à qual se associa uma palidez ao charme demoníaco - a palidez daquele que acaba de atravessar o abismo das trevas. Esta imagem grotesca não surge, com efeito, como expressão de um desespero à semelhança do abismo? Ela não invoca a vertigem abissal das grandes profundezas, o chamado de um bendito infinito pronto a engolir-nos e ao qual nós nos submetemos como a uma fatalidade? Como seria doce poder morrer lançando-se num vazio absoluto! A complexidade do grotesco reside na sua capacidade de exprimir um infinito anterior, bem como um paroxismo extremo. Como este poderia, então, objetivá-lo em contornos claros e definidos? O grotesco nega toda idéia de harmonia ou de perfeição estilística.

 

O grotesco esconde a mais frequente das tragédias que não se exprimem diretamente - aí está uma evidência do motivo de formas múltiplas do drama íntimo serem suscitadas. Quem quer que tenha visto no seu semblante uma hipóstase grotesca não poderá nunca mais mirar-se no espelho, pois ele terá sempre medo de si mesmo. Ao desespero sucede-se uma inquietude plena de tormentos. Que faz, então, o grotesco, senão atualizar e intensificar o medo e a inquietude?

 

 

Emil Cioran, "Nos Cumes do desespero"

 

 

A alma permanece acólita do Druida. Pelo menos é como lhe chamo e persisto. Mesmo que haja quem me informe desconhecer por onde caminha ele. Porque escolhe essas escarpas, quando tão fácil seria o voo rasante. O Druida é caminhante entre destroços. 

 

Mas eu chamo-lhe Druida e ele não o nega. Sorri em desvelo enquanto o vento agita a imensa barba branca que lhe cobre o rosto ossudo. Esfrega as mãos ásperas e ergue as sobrancelhas espessas e pálidas pela idade. O Druida não me confirma os seus anos. Nem tantos outros que o conhecem há décadas.

 

Os olhos ficam vermelhos enquanto o Druida consulta o seu Bong. Afasta com desprimor a farta cabeleira cuja cor me recorda a lua. Conhece os segredos universais pelo seu cachimbo de água enquanto une e volta a separar as raízes da alma - da sua alma. O Druida tem a alma profana mas fala com os deuses. Olhos nos olhos. E afirma com a certeza das escaras que não existe inferno algum! E o paraíso acaba por se tornar uma merda!

 

Eu gosto de chamar as coisas pelos seus nomes. E as pessoas são como as coisas, precisam de ter nome. Necessitam de ser chamadas. Mesmo que estejam a morrer o nome é a última coisa a ficar. Por isso chamo-lhe Druida. Entre outros nomes - tantos que ele mesmo os desconhece. Ou não. O seu Bong ajuda a desfiar a décadas e os nomes. O fumo abraça o vidro enquanto o homem entoa algo semelhante a uma aurora de notas. As suas botas pesadas marcam o passo da melodia e o pó das estrelas está diante de si - a um esticar de braço.

 

Ele sabe dos dias de solstício invernal. Ampara a liberdade das noites em serena liberdade. E prefere a companhia dos gatos que se aquecem contra o seu corpo. Em longas horas fica atento ao crepitar decadente da alma humana. Por isso se deixa embalar pela ilusão de solidão.

 

O Druida revela-se deus. Enquanto solta uma imensa baforada pelo nariz e entre os lábios, encosto a cabeça à parede para ouvir as virtudes de um sol que se transformou em réptil e se arrasta atrás da raça humana. Um Sol sem pés e escamoso. Inóspito e de sangue - frio.

 






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