Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]


 

Aceitar a Solidão é uma virtude que se aprende, enquanto vamos  cedendo à litania poética que lhe confere todos os sintomas de uma doença benigna. Desfrutar da Solidão é um teste de resistência para criaturas gregárias como nós; nunca será um poiso de dissertação grandiloquente onde estar só é um  feito homérico, orgulhosamente assumido como uma necessidade.

A criatura que clama aos ventos estar só e orgulhosamente só nunca aceitará a verdadeira solidão. Não apenas a ausência de gente que transforma os dias nos ciclos de repetição que levem ao estado anímico dos loucos. Porque mesmo esta falta de gente se aprende aceitar; a viver sem gente e até a questionar o instinto que nos diz ser bem melhor estar assim.

Não.

Não escrevo sobre a solidão do poeta néscio que imagina a sua "solidão". Nem sequer do sentimentalismo dos que acham viver em solidão só porque estão isolados num Universo de gentes.

Escrevo sobre as virtudes da sobrevivência. São paixões minhas. 

Escrevo porque não somos todos iguais. Sobreviver não tem a mesma noção em quem julga estar só e não conseguir existir sem o beijo dos filhos; a solidão não é definida pelas margens do "deixa-me em paz! prefiro estar só!"; não é aceite como um estado de beatitude a que devemos a nossa devoção.

Isto não é Solidão. É apenas a ladainha do romântico.

O verdadeiro sobrevivente é um silogismo de experiência adquirida; como um veterano combatente. Sabe, em todas as fibras, dos paradigmas do isolamento venenoso. Subsiste num retiro ermo onde estar só não é apenas físico. Resiste à mão que comprime o peito e aperta o coração. Insiste na negação de culpa porque estar só nem sempre é uma escolha; é por vezes um meio de sobreviver. 

O hábito da Solidão não é um estado de alma. Tem de ser imposto com uma força férrea, tornando-se numa companhia tantas vezes necessária.

Mas na maior parte dos dias é uma verdade constritora realmente reconhecida por poucos loucos.

Uma escuridão com um regresso paulatinamente mais doloroso e difícil.

 

 

 

“Uma pessoa não é iluminada por imaginar figuras de luz, mas por estar ciente da escuridão.” -Carl Jung

 

Morfeu acompanha os meus dias há anos. Desde aquele momento distante em que descia a calçada da Graça debaixo de chuva intensa, solitário e creio que próximo do desespero absoluto; talvez porque as estrelas estivessem alinhadas - já me disseram ao ouvido -, ao ver aquela silhueta negra encharcada e encolhida de frio, quase dissolvida entre a parede suja e o enorme caixote de lixo, perante a mais absoluta indiferença dos carros que que passavam e outras pessoas demasiado apressadas, eu tenha conseguido respirar um outro desespero. Algo que imaginava ser impossível.

Recordo-me claramente de atravessar a estrada a correr; lembro-me da silhueta encharcada se tornar ainda mais pequena, como que antecipando um golpe de dor, do seu gemido enquanto a agarrava entre os dedos de uma mão e a colocava cuidadosamente dentro do bolso aquecido do meu casaco.

Existe um preencher de vazio portentoso na mera decisão de esquecer o nosso próprio desespero pessoal, quando entramos em casa como desajeitados palhaços, enquanto tentamos retirar os tremores do corpo felino com a água morna na banheira - como se algo demasiado importante para nós fosse acontecer. Não na caridade do gesto. Não na piedade que me varreu cruelmente. 

Não. Foi algo que apenas descobri com a passagem dos anos.

Morfeu, porque ao dormir junto a mim em momentos de navegação pelo meio de destroços, consegui fechar os olhos e sonhar. 

Essencial. Vital.

Morfeu "ensinou-me" o fascínio pela escuridão. Por todos os minutos eternos em que caia na cama exausto, incapaz de encontrar força para me suster, ele deitava-se ao meu lado e eu conseguia ver, claramente, o brilho verde dos seus olhos no escuro. O passear exímio por cima do meu peito quando eu nada conseguia ver.

Existe uma beleza fundamental na mais extrema escuridão. No preceito imutável e intransponível da ideia  que quando a luz terminar esta escuridão permanecerá. Estranho mas reconfortante. Como se fosse um estranho sortilégio revelado por um gato negro que, arrogantemente, eu pensei estar salvar.

Acabamos por aceitar a nossa natureza de sombras sem medos, tentado imitar um pequeno Deus na sua amizade com a  escuridão. Pela sua mera presença reconfortamos as nossas falhas e  fragilidades físicas.

Morfeu é um companheiro singular. Sempre comigo mas não sou o seu amo. Genuinamente e humildemente me assombra porque cuida de mim, pressentindo quando algo se carrega demasiadamente de negro.

Morfeu foi o meu porto em todas as cartas que nunca escrevi enquanto vagueava entre as minhas sombras. Aqueles primeiros raios de conhecimento solitário e longe das pessoas. A constatação visceral, inequívoca, do meu amor incondicional a sombras e escuridão como caminho que decidi escolher, tentando pateticamente caminhar sem tropeçar. 

Ansiando vestir a pele do pequeno Deus negro.

Talvez eu esteja errado. Talvez.

Mas porque amo esta escuridão pessoal eu nado entre estrelas. 

Assim sei que morrei em paz.

Chega-me.

 

A palavra.

 

Falar é fácil. Dominar a oratória requer a disciplina e o método que tornam o som das palavras no  discurso. Discursar,  discutir, nunca me soaram a arte - mesmo sabendo que tal nos afasta de todas as outras criaturas.

 

Sempre procurei a palavra escrita. O traço e a expressão. O verbo. A frase escrita que carrega em si todo o portento capaz de me silenciar; carregar o meu silêncio como a mais sincera homenagem. 

 

A escrita é o próprio silêncio. A solidão na ausência do som. Os meus olhos, o teu cheiro e o teu respirar, nas palavras escritas. O alimento na ausência e na saudade. A marca que não se desvanece no  desaparecer das horas - como se desvanecem os sons.

 

Não pertenço ao universo daquele texto. Mas caminho como um fantasma entre as lembranças e as lágrimas do punho que solta a escrita. Quando cai a noite estou junto ao candeeiro que se desliga; onde o caminho se faz em silêncio, entre os ares frios da manhã agreste e o primeiro olhar para o dia que se transforma em escuridão, eu consigo estar presente. Quase pertencer - enquanto crescem as frases, o feitiço permanece.

 

Sou um animal que procura atmosferas, sempre distantes se faladas. Universos - apenas possíveis por estranhos dotes alquimistas. Mundos descritos na escrita coroada pelo meu silenciar.

 

 

 

" Baby, it´s a violent world ..."

 

(999)

 

Enquanto observo reprimo a respiração. Quando olho os papéis, esforço-me na vã tentativa de concentração. Apenas cedo após palavras de tranquilidade e acenos de aceitação. Aceito. Respiro. Deixo assim que mais uma vez o meu espírito se recline na câmara do seu riso suave, quase feito de fumo. Reconheço, nestas horas, ser incapaz  de pressentir se sente medo e antecipação; sequer se a consciência de um passado recente de dor não transfigura as suas palavras, enquanto me observa descontraída. Aparentemente.

 

O que faz com que eu regresse em linha recta? Talvez a semelhança nos olhos verdes e o peso da sensação de não querer falhar; talvez porque uma parte dos corredores escuros do meu medo sejam feitos por ela. Gosto de aninhar no meu peito os batimentos de partilha do seu amor por gatos que sempre vamos considerando quimeras biológicas, enquanto vou desejando que tenha as suas sete vidas intactas.

 

Necessito das suas gargalhadas e da sua capacidade de me expor, mas também me fascinam os Invernos dos  dias em que podemos reflectir algo familiar - uma racionalidade sombria pontuada por uma troca de olhares de cumplicidade e protecção. Espíritos que por vezes se tornam inquietos - talvez por já terem provado do cautério de muitos medos.

 

 

 

 

 

" Nós que defendemos outra fé, nós que consideramos a democracia não só como uma forma degenerada da organização politica, mas como uma forma decadente e diminuída da humanidade que ela reduz  à mediocridade, onde colocaremos a nossa esperança?"  Nietzsche

 

.....

 

De todas as cedências que inevitavelmente faço, dar a outra face não é uma delas. Sempre me pareceu covarde o conselho dos que defendem esta ideia; após a primeira bofetada perdoar, e se assim for necessário virar a outra face.

 

Estranho. Covarde e inadmissível. E que nada tem a ver com o valor da cedência em nome de algo superior, que não esmague o individuo pelo colectivo.

 

Escrevo sobre ceder. Pequenas cedências que vão talhando o que somos. Maneiras inventadas para uma aceitação.

 

Cedemos em nome da estabilidade que troça de nós todos os santos dias da nossa miserável vida; baixamos a cabeça e a voz, preciosa voz, ao primeiro bofetão de quem agride porque faltam as forças da coragem e porque a próxima bofetada será mais forte. Mais humilhante. Aceita-se porque se teme o abandono ou a morte. E sim, porque existem filhos para cuidar.

 

Confundimos amar com ceder para melhor. Somos tristes incautos e incapazes de entender a nossa falta de inocência disfarçada de serenas promessas.

 

O maior embuste a que nós, veneráveis incorrigíveis, entregamos a nossa alma sem questionar chama-se democracia.

De todas as formas de ditadura, de pensamento totalitário de bem colectivo que nega o individuo, a democracia talvez seja a mais venerada; uma forma de tumor benigno de outras ditaduras justifica de tudo um pouco. Justifica a supressão de direitos em nome do politicamente correto; a implementação de bens e costumes para todos onde a negação se transforma em insultos e atribuição da chancela do discurso do ódio.

 

Tenho nestes últimos meses testemunhado em primeira pessoa a democracia a funcionar. São semanas a observar a deturpação sistemática da minha liberdade de expressão porque não defendo outras cores; noites a sair de recintos lotados por uma paixão comum e  lamentavelmente ter de recorrer aos punhos para me defender de supostas brigadas " antifa" com os rostos tapados. E descubro que são criaturas que não aceitam o que sou e quero; que não são tolerantes ao que exprimo. Descubro que a democracia é um conceito absurdo e utópico, tão delirante como a necessidade de não aceitar as diferenças.

 

Veste-se de justiça e direitos para todos. A cor dos seus olhos é fiscal, sempre pronta a humilhar e violar direitos. Mas não aceita a minha discordância e muitos menos tolera outros caminhos.

 

Descubro que a democracia é uma ditadura inválida disfarçada de graças e atributos. Que não se orgulha na aceitação das discordâncias. Uma impostora que se atribui a si própria as mesmas virtudes do totalitarismo mais raivoso: imposição de doutrinas com a ponta das botas. Um conceito vendido durante séculos e em cujo nome se poderiam recitar poemas das maiores atrocidades.

 

Mas estranho a fraqueza dos seus "democratas" de cara tapada na noite. Eles sangram e choram.

 

E são muitas a vezes que fogem como ratos enquanto chamam pela mãe.

 

Frágeis e ocos.

 

......

 

 

As pessoas são como fontes. A maioria, grande maioria, pinga apenas liquido azedo e inútil. E o viajante experimentado sabe que não conseguirá saciar a sede nestes fontanários envelhecidos por anos de incapacidade. São fontes antigas e consumidas pelo pensamento arrependido do que poderiam ter feito e nunca fizeram; é possível a quem realmente caminha em viagem escutar os seus pensamentos transformados em mágoas liquidas de escolhas infelizes em nome dos outros. Escutar. Perante o fim que se aproxima esfregando as mãos rugosas e frias. Entender como inútil foi a sua existência.

 

E existem pessoas que são labirintos para mim. Eu sempre procurei labirintos estreitos, quase escarpas. Conheço criaturas que são labirintos a desembocar em um nada branco; paredes alvas de absurdo nulo pingando becos sem saída. Conheço.

 

E sei de outros labirintos estreitos que vão desaguar em fontes que jorram pedaços portentosos de uma estranha alquimia. Aqui o viajante cansado pode repousar em paz e beber até ficar alucinado. São fontes que calam a voz dos cínicos e descrentes a tragos generosos.

 

Conheço um rei destes labirintos que terminam em fontanários cristalinos. Nos gestos toldados pela paralisia cerebral um reino de corredores estreitos e ameaçadores. Mas no pensamento subtil e engenhoso toda uma arte de fuga e superação, própria aos que não se escondem nos lamentos da má sorte. Pertença das criaturas de mito.

 

Eu não sinto qualquer acesso de piedade por ele. Antes uma maldita humildade e cumplicidade. Nos dez longos minutos que decorrem para apertar o cinto no buraco certo; na recusa em ser ajudado nas mais pequenas tarefas que eu e toda uma raça de criaturas, executa inconsciente, existe uma teimosia orgulhosa que apenas, mas mesmo apenas, irradia na periferia de certos recantos da alma.

 

Encontro nele algo raro que me obriga a levantar os olhos do abismo: justificação! Motivo para outros dias.

 

Que a grandiosa mãe natureza, essa incoerente e débil mutante, lhe tenha roubado a virtude da fala coordenada sem a necessidade de um esforço desumano para exprimir um verbo, que os seus olhos castanhos só a esforço consigam alinhar-se e os movimentos do seu corpo sejam muitas vezes os de uma marioneta caótica, este rei do labirinto responde com um sistemático sorriso gigantesco; batalhando todos os dias para se fortalecer e coordenar como uma bofetada de revolta.

 

Genuinamente se silenciam outros lamentos ou desilusões. Quando soa a gargalhada de triunfo pela vitória de mais um peso erguido do chão.

 

Com a força de quem luta para se endireitar e permanecer  erecto. 

 

Como assim deve ser num rei orgulhoso.

 

E eu? Eu vejo-o. E amo os labirintos.

 

“Uma pessoa não é iluminada por imaginar figuras de luz, mas por estar ciente da escuridão.” Carl Jung, arquétipo da sombra.

 

 

.......

 

 

Talvez se trate de redenção. Da nossa própria salvação quando sabemos perfeitamente que somos nós próprios a cavar a estrada do nosso inferno; só existe inferno porque assim queremos e sentimos essa necessidade. É pessoal. Único. Nosso.

 

E não depende da salvação de um profeta redentor. Nem da inexplicabilidade do seu nascimento ou das suas promessas perdidas. Não.

 

Está bem longe disso.

 

Johansen reside no patamar de todos os purgatórios mentais. Artesão do seu próprio inferno. Desesperado na tentativa de se redimir de uma escuridão temperada com o sal de quem parece não conseguir viver num pequeno nicho deste mundo. É muito maior o tamanho da sua consciência e necessidade de espaço.

 

Quando nos conhecemos a sua primeira pergunta foi sobre a veracidade da minha cor de olhos. Ficou satisfeito com a minha resposta e puxou os cabelos longos para trás da cabeça, num gesto que hoje creio ter sido de pacificação, mostrando o buraco no seu maxilar esquerdo do tamanho de uma moeda. Uma extensa área da sua face esquerda apresentava também uma coloração escura que contrastava com a sua pele branca como neve.

 

Johansen conhece os atalhos de uma escuridão imensa e sem retorno. Da luz a desaparecer. Reconhece o seu falhanço naquela manhã quando o seu pensamento decretou a fim deste inferno. A frieza do acto subitamente traída, a mão tremeu e o dedo indicador direito perdeu a força. A hesitação desviou a bala do seu destino certo junto à carótida; mas a vingança foi consumada e a viagem levou um pedaço do seu osso do maxilar, queimou a face e arrancou um pedaço da sua orelha.

 

E tudo parece tornar-se vivo nas sombras de Johansen quando se senta e apoia o seu pé esquerdo no pequeno banco junto ao sofá. Quando faz soar as cordas da viola molda o seu próprio universo. Os cabelos escorrem pelo rosto crispado e as suas notas transfiguram a alma. Uma tristeza quase desumana invade o ar e liberta as correntes. Toca e faz vibrar as cordas enquanto se agita suavemente. Murmura muito baixinho uma melodia que apenas ele conhece mas que tem a particularidade de apertar o coração encharcando-o numa melancolia que nos deixa exaustos.

 

Talvez seja esta a sua redenção quando o Cristo lhe faltou. Este portento de expressão instrumental onde vive o  desespero de braço dado com as marcas do inferno. São sons e vibrações que nos sussurram desejos e emoções escuras.

 

E sei que são momentos destes que fazem soar as lágrimas de Johansen. Apesar do cabelo que lhe tapa o rosto como um Cristo proscrito.

Preludio a la siembra

...

 

Nunca a luz do sol me fascinou particularmente. Nunca aceitei o calor dos dias de sol intenso como bálsamo para os ossos e necessário para que sinta qualquer memória de renascimento. E são demasiadas as vezes em que são as memórias a causar o florescer das cores do Outono e o carinho do Inverno. Demasiadas.

 

A mente humana subsiste na associação de odores e sons. Os olhos e os ouvidos são o registo mais sombrio por onde passo e quando os meus dedos se fecham no corrimão das escadas as impossibilidades tornam-se possibilidades. A torrente de recordações retida a custo jorra.

 

" tenho um ódio de estimação a portas de vidro que se abrem para gente doente; ao barulho das rodas de borracha a chiar pelos corredores de pedra; a senhas de cores diversas e ao olhar indiferente de quem chama do outro lado do balcão, sempre com as mesmas perguntas. sinto-me perfeitamente capaz de amaldiçoar a luz do sol todos os dias da minha existência se assim conseguir sossegar a memória da nossa passagem pelas portas de vidro de gente doente. se assim aceitar a cobardia e não pensar no corrimão plantado no meio da escadaria, enquanto não consigo votar ao esquecimento a mão pequena e húmida apertando a minha.

 

é quase grotesco aquele dia de sol intenso e cego; aquele calor nas costas e o suor a escorrer pelas costas. a memória não atraiçoa quem se ajoelhou diante de ti no corredor de pedra; e se despediu perguntando ( estupidamente questionando...) se estava tudo bem; e creio bem que o acenar da cabeça, ainda coberta de longos cabelos de cor quase ruiva, como vinho tinto, nada mais causou do que o estropiar da pouca dúvida  entre o nada e Deus. os olhos disseram não, mesmo não chorando; os lábios foram trincados travando a angústia e incertezas. e quando desapareceu no quarto pensei em monstros que abrem a boca e engolem crianças; nunca mais deixei de ter esta emoção quando entro em quartos.

 

e durante horas, dias transformados em semanas a fio esteve deitada e poucas vezes de pé; consegui pressentir a morte sentada naquela face; troçando nos olhos vermelhos ladeados por negro, na pele outrora branca e lisa e agora soltando pequenos flocos e nos lábios escurecidos pela radiação. ali e em espera atenta para ceifar. 

 

todos os dias eu morria um pouco com a criança. imbecilmente desistia de esperar, mesmo observando como se debatia e lutava; não vertendo uma lágrima pelo crânio  rapado mas irritando-se quando eu rapei o meu com demasiado e longo cabelo; mesmo quando se forçava a comer para depois vomitar querendo engordar um pouco!

 

imbecil! nunca se pensa em desistir  perante quem quer passear pelo jardim nem que seja às nossas costas! caminhar vinte escassos metros e regressar ao colo. nunca!

 

só um estúpido não concebe resistência quase mística na fragilidade que batalha para viver, ficar acordada e escutar a minha voz lendo passagens de Hans Christian Andersen como esquecimento.

 

será necessário que cale estas memórias principalmente nos dias de sol. que espante demónios paulatinamente colocando-os debaixo de toneladas de rocha. encontro demasiadas justificações para ódios, frustrações e maus instintos diante demasiadas coisas e pessoas, que nem sequer são culpadas. sinto demasiado cinismo perante as tragédias dos outros. 

 

egoísmo? sim. dane-se!

 

retenho ainda esta centelha de alimento que me serve para consumo esfomeado.

 

saindo pelas portas de vidro onde entram os doentes do mundo. eu num tremor de triunfo e agarrando a mão de novo suave e apertado-a para que não me fugisse; ela, mais envelhecida porque afinal os verdadeiros combatentes são uma casta que envelhece mais depressa e por isso de veneração obrigatória! retirando o gorro azul de pontas longas e olhando para o céu sinistramente cor de chumbo e o pequeno nariz avermelhado cheirando a humidade extrema da manhãzinha cedo; a cabeça agora e de novo com cabelo raso e vermelho cor de vinho naquela beleza rara e perfeitamente triunfante sobre o efeito que irá provocar nos corações dos incautos que se encantem por ela; no passo apressado sem necessidade de colo; precocemente adulta e de olhos astutamente preparados para as desgraças de uma vida que por vezes é apenas merda explicita!

 

naqueles minutos sofri o punir exemplar pelos dias de dúvida mesmo sem desistir. e não é de todo agradável, é  doloroso. muito. mas é o que o penitente merece.

 

quando lhe perguntei o que iríamos fazer pediu que fossemos a uma casa de gelados; simplesmente pediu duas imensas bolas de gelado de chocolate negro e bolacha; o Universo não respirou nesses minutos, aquietou-se para observar e aprender com uma criatura quase mística em liberdade plena e sem a sua armadura de guerreira absoluta.

 

enquanto eu ia absorvendo o mutilar  e  a humilhação de quem aprendeu algo que sempre julgou saber"

 

 

 

 

 

 

 

 

Sou um homem de gatos. Seria fastidioso explicar o meu fascínio pela sua independência. Como desnecessário será revelar as muitas demonstrações de carinho e principalmente companheirismo destes reis de si próprios.

 

Também gostos de cães; ainda que menos, creio. Mas é impossível para mim que não aconteça uma vaga de admiração por  estas criaturas.

 

E  "Corto" é um caso distinto. Talvez na aparência seja igual a outros da sua raça. Talvez consiga perfeitamente ser mais um entre outros tantos; todos eles fieis e de beleza quase draconiana que tantas vezes se revela um embuste, porque invariavelmente nos encanta e esfumaça as  defesas .

No entanto, eu tenho a bizarra  tendência para observar paradoxos como justificação para acreditar em algo; tinta para os dias de dúvida. Pequenas criaturas que somos e de maior capacidade de razão, que nada serve quando penso no "Corto".

 

 "Corto" é uma criatura distinta. Diferente. Não faz parte da minha ideia de um entre tantos. Mas igual a alguns outros num pequeno ponto da elite natural. Assim teria de ser porque "Corto" é o olhar de quem não vê. São os olhos do caminhante da bengala nos dias de frio e ruas molhadas; das travessias nocturnas e das corridas pelo parque no raiar do dia quando tantos dormem.

 

Existe um manto de absoluta nobreza neste enorme cão. Na postura do pescoço direito e grosso. No caminhar silencioso e no estrondo do seu ladrar. No sentar lado a lado com quem não vê. No instinto protector, quase paternal, que rodeia todo o espaço que ocupa. Algo poético e épico.

 

Recordo-me de quando partiu a pata direita dianteira numa das nossas brincadeiras. No instinto de erguer este colosso do chão como se um filho fosse. Lembro-me do seu latido e das lágrimas a escorrerem pelo rosto de quem subitamente se sentiu mais cego e impotente; de braços esticados e frágeis. Lembro-me.

 

Do abraço estranhamente humano entre um homem e um animal. Do rosto molhado unido ao focinho do cão, dos seus olhos para o mundo. Do esmagamento asfixiante e descrente que surge quando constatamos, compreendemos, o que significa simbiose perfeita: naquele preciso momento. 

 

Aprendi então da inexistência de dono ou propriedade; de formulas sem valor de posse ou domínio.

 

Recordo que retive o meu respirar durante largos momentos. Chocado. Um estranho num universo que não era o meu.

 

Recordo...

 

Gosto de passear "Corto" sozinho. Quando não necessita de ser os olhos de ninguém. Quando é apenas ele. "Corto".

 

Gosta de caminhar e correr na praia. Prefere os dias sem sol e sem gente. Prefere os céus cinzentos e quando o vento sopra uma aragem fria e húmida. Entra na água fria e levanta o nariz para o céu cheirando e absorvendo a maresia, de olhos semicerrados e corpo encharcado.

 

Gosta de correr ao meu lado e de rebolar na areia molhada enrolado no meu corpo, enquanto finge estar zangado comigo. "Corto" é nobre e tem alma de poeta. Um príncipe nascido para ser venerado. Senhor que dita a vontade de viver para quem, por vezes, se recolhe na sua escuridão e verga ao peso da falta de uns olhos que vejam aqueles mesmos dias na praia; cinzentos e de mar cor de chumbo.

 

"Corto" é distinto. Sei que sim. Uma criatura que me recorda ainda ser possível nobreza desinteressada. Instintos que me afirmam que nem tudo é caminho para o niilismo. Ainda existe esperança. 

 

 

 

 

(999)

 

 

Sei agora  que o pequeno e estreito caminho que conduz à minúscula estufa já não é percorrido todos os dias. Na neve ou no brilho do sol ameno. Que a vegetação se alongou e queimou debaixo do manto da geada. E o silêncio se revela insuportável na sua homenagem.

 

Soube há poucos dias...

 

Que já não adianta que me sente no alpendre acompanhado por este café negro como corvos, descansando as pernas de botas assentes no apoio de braços pintado de branco recentemente.

 

O velhote já não volta a sair pela porta de casa pisando as pedras húmidas do pequeno jardim; não caminha já, solene, gigante entre pétalas tardias e insectos negros, para a estufa de vidro baço. O ajoelhar quase etéreo e o curvar melancólico da cabeça grisalha numa oração silenciosa, o depositar de uma flor num pequeno lugar, são apenas espanto meu. Testamento escondido.

 

Eu sei que vou aceitar como sempre. Sei.

 

Não voltar a escutar o ranger da pequena porta de metal que oferece a saída do jardim para o passeio da rua larga. Nem testemunhar a quase maquinal orbita do fino pescoço, como manobra para desentorpecer a magnitude da solidão triste.

 

Sei.

 

Mas creio firmemente que este mundo está mais pobre e desolador. Inexplicavelmente mais encolhido e magro.

 

O velho senhor já não volta a caminhar erecto e sem a curva dos anos pelo passeio até se evaporar entre o nevoeiro húmido das manhãs e a esquina turva da rua de pedra branca.

 

Disseram, creio que para o meu consolo, que já se faziam tardias as horas e os dias de saudade do velho senhor. De quem? Do quê? Alguém me assegurou que por vezes amar outra criatura era assim, doloroso na ausência. Cruel no respirar nostálgico; onde todos os dias se tornam espera em saudades.

 

Não o sei.

 

Para mim, pelo muito que nos últimos dias conheci do velho, reservei um absurdo sentimento de perda. Um vazio agreste e gelado de estrelas distantes. Não se explica esta insustentável noção de vácuo onde antes passava, depositando uma homenagem, um velho a quem nunca exprimi um som.

 

Mas que sinto ter conhecido toda a vida.

 

 

 

 

 




Arquivo

  1. 2024
  2. JAN
  3. FEV
  4. MAR
  5. ABR
  6. MAI
  7. JUN
  8. JUL
  9. AGO
  10. SET
  11. OUT
  12. NOV
  13. DEZ
  14. 2023
  15. JAN
  16. FEV
  17. MAR
  18. ABR
  19. MAI
  20. JUN
  21. JUL
  22. AGO
  23. SET
  24. OUT
  25. NOV
  26. DEZ
  27. 2022
  28. JAN
  29. FEV
  30. MAR
  31. ABR
  32. MAI
  33. JUN
  34. JUL
  35. AGO
  36. SET
  37. OUT
  38. NOV
  39. DEZ
  40. 2021
  41. JAN
  42. FEV
  43. MAR
  44. ABR
  45. MAI
  46. JUN
  47. JUL
  48. AGO
  49. SET
  50. OUT
  51. NOV
  52. DEZ
  53. 2020
  54. JAN
  55. FEV
  56. MAR
  57. ABR
  58. MAI
  59. JUN
  60. JUL
  61. AGO
  62. SET
  63. OUT
  64. NOV
  65. DEZ
  66. 2019
  67. JAN
  68. FEV
  69. MAR
  70. ABR
  71. MAI
  72. JUN
  73. JUL
  74. AGO
  75. SET
  76. OUT
  77. NOV
  78. DEZ
  79. 2018
  80. JAN
  81. FEV
  82. MAR
  83. ABR
  84. MAI
  85. JUN
  86. JUL
  87. AGO
  88. SET
  89. OUT
  90. NOV
  91. DEZ
  92. 2017
  93. JAN
  94. FEV
  95. MAR
  96. ABR
  97. MAI
  98. JUN
  99. JUL
  100. AGO
  101. SET
  102. OUT
  103. NOV
  104. DEZ
  105. 2016
  106. JAN
  107. FEV
  108. MAR
  109. ABR
  110. MAI
  111. JUN
  112. JUL
  113. AGO
  114. SET
  115. OUT
  116. NOV
  117. DEZ
  118. 2015
  119. JAN
  120. FEV
  121. MAR
  122. ABR
  123. MAI
  124. JUN
  125. JUL
  126. AGO
  127. SET
  128. OUT
  129. NOV
  130. DEZ
  131. 2014
  132. JAN
  133. FEV
  134. MAR
  135. ABR
  136. MAI
  137. JUN
  138. JUL
  139. AGO
  140. SET
  141. OUT
  142. NOV
  143. DEZ
  144. 2013
  145. JAN
  146. FEV
  147. MAR
  148. ABR
  149. MAI
  150. JUN
  151. JUL
  152. AGO
  153. SET
  154. OUT
  155. NOV
  156. DEZ
  157. 2012
  158. JAN
  159. FEV
  160. MAR
  161. ABR
  162. MAI
  163. JUN
  164. JUL
  165. AGO
  166. SET
  167. OUT
  168. NOV
  169. DEZ
  170. 2011
  171. JAN
  172. FEV
  173. MAR
  174. ABR
  175. MAI
  176. JUN
  177. JUL
  178. AGO
  179. SET
  180. OUT
  181. NOV
  182. DEZ


topo | Blogs

Layout - Gaffe